segunda-feira, dezembro 08, 2014

CARTA ABERTA AO SR. ANTÓNIO COSTA (aos vereadores da câmara municipal de Lisboa e aos deputados municipais)

Estou numa revolta tal que se me põe o estômago em brasa, o coração em alta velocidade e os olhos lacrimejantes. Dir-me-á que há coisas piores que também me deviam revoltar, e revoltam, mas hoje é esta.

Já há uns tempos que ando para escrever sobre este assunto, avisei até nessa coisa chamada facebook, mas sendo a revolta grande pensei que me teria de acalmar para não sair disparate e porque até talvez não se viesse a concretizar a ideia.

Falo, é claro, da proibição de circulação em Lisboa de carros anteriores a 2000 e 1996, em diferentes circunstâncias.

Não me venha com a história de que vou falar de casos pessoais, pois todos os que têm carro anterior àquelas datas são casos pessoais, muitos deles iguais ao meu. Quem tem carros mais novos terá a sua história, com certeza mais brilhante que a nossa. Ainda bem que todos vocês têm carros novos, significa que ganharam bem, mas chego à conclusão de que não conhecem os lisboetas, o que é grave.

Nasci em Lisboa, vivo em Lisboa, pago todos os impostos e taxas que revertem a favor da Câmara. Penso que tenho direito a tratamento de tapete encarnado, como todos os lisboetas nas mesmas circunstâncias (pensava mal, pelos vistos!).

O meu bólide (poderá chamar-lhe carcaça se o entender) vai fazer dezanove anos no próximo mês. Nunca tive dinheiro, desde que o comprei, para adquirir um novo. Estou a tentar comprar um carro usado, mas penso que só consigo adiantar uns dois anos à idade do meu actual.

Ando há mais de dez anos em transportes públicos ou de táxi. A maior prova disso é a quilometragem do dito bólide (ou carcaça) após estes dezanove anos ao meu serviço: pouco mais de 122.000 quilómetros.

Neste momento sou a única da família chegada que até tem carro. Se quiser mostrar à minha mãe (outra sua munícipe que por razões de saúde já não anda) a sua (do Sr. António Costa) tão preciosa Ribeira das Naus, não posso. Teria de a meter no Metro, calculo. Não acredito que nenhum dos senhores em consciência (e têm-na?) o fizesse à sua própria mãe.

Não quero saber se isto é por causa da poluição e multas da Comissão Europeia. Seja criativo, é essa a sua obrigação, foi para isso que o elegeram, não para escolher os caminhos fáceis das proibições. Converse com as empresas de transporte e subsidie mais percursos, converse com os presidentes de câmara à volta da cidade, envergonhe quem só anda de carro, sei lá, tudo menos proibir os munícipes de mais baixos rendimentos de poderem atravessar Lisboa nem que seja uma vez no ano. Há muitos argumentos e alternativas contra esta aberração, mas uma cabeça quente não chega para tudo.

Não vou ligar à proibição e juro que se for multada nas pouquíssimas vezes em que andar de carro em Lisboa (será já no Natal?), se puder levo o caso a um qualquer tribunal português, europeu ou mundial este atropelo injusto e vergonhoso num momento de crise como este.

Se o Sr. trata assim os seus munícipes, facilmente se calcula como tratará os portugueses se chegar a cargo mais alto. Comigo não conte.

terça-feira, setembro 09, 2014

Pescarias ego quoque

"....
Já não há bárbaros, Faulques. Estão todos cá dentro. E nem sequer há ruínas como as de antigamente, acrescentaria mais tarde, em Osijek, enquanto fotografava uma casa cuja fachada desaparecera sob uma bomba e que, atrás dos escombros amontoados na rua, mostrava, ainda de pé, a quadrícula íntima dos quartos com móveis, utensílios domésticos e fotografias familiares dependuradas nas paredes. Noutro tempo, disse - deslocava-se com precaução entre os pedaços de betão e os ferros retorcidos, com a máquina fotográfica perto da cara, procurando o enquadramento perfeito -, as ruínas eram indestrutíveis. Não achas? Ficavam aí séculos e séculos, embora as pessoas usassem as pedras nas suas casas e os mármores nos seus palácios. E depois apareciam Hubert Robert ou Magnasco com o seu cavalete, e pintavam-nas. Agora não é assim. Repara nisto. O nosso mundo fabrica escombros em vez de ruínas e, assim que pode, lança-lhes um bulldozer e fá-los desaparecer, disposto a esquecer. As ruínas incomodam, importunam. E, claro, sem livros de pedra para ler o futuro, vemo-nos de repente na margem, com um pé na barca e sem moeda no bolso para Caronte."

Arturo Pérez-Reverte em O Pintor de Batalhas 
Edições Asa - Tradução de Helena Pitta

Pescarias ego quoque

"...
O grupo de cavaleiros ficava agora completo, faltando alguns retoques que seriam dados mais à frente. Sobre as suas cabeças, no ponto de fuga previsto entre eles e o cavaleiro que investia solitário contra o bosque de lanças inimigas, erguia-se - erguer-se-iam quando fosssem mais que traços esquemáticos a carvão - as torres de Manhattan, Hong-Kong, Londres ou Madrid; qualquer cidade das muitas que viviam confiantes no poder dos seus colossos arrogantes: um bosque de edifícios modernos, inteligentes, habitados por seres seguros da sua juventude, beleza e imortalidade, convencidos de que a dor e a morte podiam manter-se à distância com a tecla enter de um computador. Ignorando, todos eles, que inventar um objecto técnico era inventar o seu acidente específico, da mesma forma que a criação do universo, desde o momento da nucleossíntese primordial, trazia implícita a palavra catástrofe. Por isso a história da Humanidade era tão sortida de torres feitas para serem evacuadas em quatro ou cinco horas, mas que só resistiam à acção de um incêndio durante duas, e de Titanics impávidos, insubmergíveis, à espera do bocado de gelo disposto pelo Caos no ponto exacto da sua carta náutica."

Arturo Pérez-Reverte em O Pintor de Batalhas 
Edições Asa - Tradução de Helena Pitta

quarta-feira, agosto 27, 2014

Velha

Só te lembras dos nomes à décima vez,
Só acertas com a linha na agulha à vigésima vez,
Mas ainda podes ler, rir e amar cem vezes, sem vez.

Leonor Raposo

Eco

Uma palavra basta,
que o diga o eco.
Sésamo revela tesouros,
experimenta outra.
Tu sabes.
Sempre soubeste.
És eco.

Leonor Raposo

sexta-feira, agosto 15, 2014

Nos 50 anos da morte do Pai

Se a vida política é convívio de homens, tem de os aceitar como são – com ideias, com interesses, com opiniões, com reflexos distintos.
Uns, como os fascistas, esperam criar ideias uniformes e acabam contentando-se com meros reflexos, condicionados por uma propaganda eficaz. Outros, como os democráticos, satisfazem-se com a variedade de opiniões, servidas ao pequeno almoço com o diário do partido.
Já vimos os resultados práticos destes sistemas.
Quer-nos parecer que o grande erro está em considerar o “homem político” como apenas dotado de opiniões ideológicas, quando há que o entender na sua integridade – dotado de opiniões, sem dúvida, mas com interesses reais e reais razões.
As razões podem discutir-se; os interesses podem harmonizar-se; só as opiniões se chocam ou se esmagam.
A nosso ver há que procurar que a vida política reflicta adequadamente as várias razões e os vários interesses de todos os portugueses, e que ao debater aquelas e ao acomodar estes, os portugueses sejam naturalmente levados a encontrar-se, por cima dos seus reflexos de proletário ou de visconde, para além das suas opiniões sobre a Reforma Agrária ou a nacionalização da C.U.F.
Este objectivo – a nossos olhos, o objectivo de toda a política autênticamente portuguesa – poderá porventura tentar-se em moldes partidários; só apesar deles se poderá conseguir.
Para tanto, seria necessário um grau de progresso económico, social e cívico, que se se terá alcançado na Suíça ou no Canadá, falta ainda à Itália e à França. E quem poderá afirmar que ultrapassámos todos os latinos em amor do real, em tolerância de espírito, em largueza de vistas?
Deverão ser as próprias formas da vida política nacional quem naturalmente neutralize a virulência das lutas ideológicas, sem coarctar a liberdade e a fecundidade da convivência dos portugueses.
Importa portanto que a Representação Nacional espelhe, não tanto as opiniões que dividem e os partidos que partem, mas as razões que se escutam e os interesses que se integram.

Rivera Martins de Carvalho
Excerto do texto “Esboço para um plano de trabalho” redigido por RMC mas publicado sob a responsabilidade da 1ª Comissão Executiva do Instituto António Sardinha: Manoel Galvão, Gastão da Cunha Ferreira, Henrique Barrilaro Ruas, Fernando Calheiros Vellozo e Rivera Martins de Carvalho e republicado em “Diário Político e outras páginas”, Biblioteca do Pensamento Político, 1971


quinta-feira, julho 10, 2014

Pescarias ego quoque

"Agora examinava atentamente as imagens do mural, franzindo o sobrolho.
- Também fazem parte das suas recordações as guerras antigas?... Tróia e sítios assim?
Foi a vez de Faulques esboçar um ligeiro sorriso.
- É disso que se trata. Os sítios assim são sempre o mesmo sítio."

Arturo Pérez-Reverte em O Pintor de Batalhas
Edições Asa - Tradução de Helena Pitta